sobre o processo


Catalão Macaubal
Por Cris Lozano

           A idéia de realização do projeto Catalão-Macaúbal de Antonio Rogério Toscano, na Escola Livre de Teatro de Santo André, se organiza em dois pontos: pesquisar e refletir a linha mestra temática do texto, as tradições relacionadas a cultura regional e suas transformações. E realizar um estudo vertical sobre a criação de personagens, composição e a atuação, com alunos do terceiro ano.
            A narrativa, tomada como matéria de base para a construção das personagens e da encenação transita entre o gênero lírico e o dramático, explorando suas possibilidades de expressão.
            Existem aspectos fundamentais da obra textual que nos levam a construção de um processo artístico que permite o desenvolvimento de uma prática teatral em que a criação se organiza a partir da experimentação.
           A definição do tema e do campo de pesquisa do projeto  determinou diretamente o material técnico e poético a ser pesquisado pelo ator. Para tanto,  corpo e voz estarão em busca de encontrar  uma expressão uníssona com o pensamento, do processo de pesquisa e criação ao próprio espetáculo, onde estarão visíveis os resultados artísticos.
          O ponto de partida dos estudos se organizou em pesquisas e práticas de materiais como leitura de teses e literatura especializada; práticas de cantos e danças regionais; treinamento de técnicas corporais e vocais; composição com instrumentos musicais e estudos de canções do universo caipira; criação de composições originais e arranjos, entre outros.
            O desenvolvimento de uma linguagem corporal e vocal é uma base material para a criação poética do ator, a escolha das matrizes técnicas não foram feitas sem uma estreita articulação com a aspiração poética e estética do projeto de encenação.
Outro procedimento artístico-pedagógico foi criar núcleos de trabalho com os alunos onde o diálogo dos modos de produção, os conteúdos discutidos, suas formas de realização material e ainda, o olhar do espectador constituiu-se numa prática coletiva onde todas as vozes se articularam em função de cada projeto proposto.





Apresentação lúdica / reflexões / preâmbulos / motivos / idéias soltas
Por Antônio Rogério Toscano – dramaturgo e professor de teoria teatral

            Eu venho da cidade de Macaubal, na região de São José do Rio Preto, onde nasci. Minhas memórias guardam um tempo em que os desfiles em dias santos e as procissões eram acompanhados por cavalos e cavaleiros, que invadiam a cidade em um cortejo gigantesco. Roupas festivas coloridas. Círios acesos. Hoje, motocicletas substituíram os cavalos, que – coitados! – ficam restritos aos maus tratos dos rodeios pasteurizados da “nova cultura paulista”.
            Minhas memórias pertencem ainda a um tempo em que a tradição indicava valores. E não quero aqui parecer saudosista ou conservador, defendendo o que é de um tempo que não existe mais. Eu mesmo mudei muito, moro na cidade. Mas sinto saudade daquilo que me formou, da cultura caipira que me alimentou no berço, do jeito de ser daqueles que me receberam, quando nasci.
            Eram parteiras, benzedeiras, rezadores, roceiros, sanfoneiros, cantores, brincadores das folias de Reis, homens e mulheres da terra, comuns em seus hábitos rotineiros, que tinham uma poesia tão própria, adequada à ordem dos dias que custavam a passar.
            A vida nos sítios era uma pacata forma de contemplação da existência, junto à natureza, e havia um orgulho incontido em conhecer os mistérios da mudança do “tempo” (como chamávamos o clima) e o comportamento das aves. A ciência era a sabedoria dos dias e o descanso, sob uma árvore frondosa, a necessidade das horas.
Hoje, os saberes não estão mais lá. Todos querem para si o que só tem na cidade, todos querem comprar o que se vê na televisão. Há uma dispersão generalizada dos antigos saberes. É como se eles não fossem mais suficientes, porque só se deseja o que não se tem. E, como conseqüência, o que nasce nos terreiros dos sítios não tem quase nenhum valor.
Para falar a verdade, são poucos os que ainda preferem morar perto do mato. O êxodo na minha região levou os moradores das roças para as zonas periféricas e miseráveis das cidades, onde seus valores culturais são desdenhados e paulatinamente substituídos pela massificação dos costumes.
Nenhum valor tem a identidade própria do homem rústico dos tempos em que eu habitava perto do mato e perto do rio.
            Nestes tempos da minha infância, vivia-se sem televisão. E ninguém sentia falta do que não se possuía. Tinha valor o que nos dava pertencimento – e não o que nos fazia inferiores.
Ao invés da solidão coletiva de quem se perde, individualista, embora um ao ladinho do outro, com olhos vidrados na tela, havia o convívio nos alpendres, nas cadeiras de madeira, ouviam-se as cantorias em volta das fogueiras e as brincadeiras no quintal renovavam o corpo e preparavam o sono.
As rezas tinham também a função de juntar pessoas nas casas, além de permitir um contato com Deus. Os terços eram cantados e a comida era servida farta, sem cardápio – pois não é necessário escolher o que comer, quando se pode comer de tudo.
As narrativas da minha meninice pululam vivas na minha cabeça. As histórias que se contavam podiam ser sombrias ou engraçadas. Às vezes, eram ambas as coisas. E não havia limites para a imaginação de quem vivia em um mundo em que seres concretos e abstratos conviviam, com a mesma intensidade e a mesma materialidade. Espíritos zombeteiros e façanhas de sujeitos corajosos dividiam espaços nas sagas caipiras contadas pela tradição oral, na roda de papo dos homens ou diante do barulho das panelas areadas das mulheres, na cozinha.
A roupa lavada ficava quarando sob o sol, na grama. As vacas às vezes chegavam e mordiam um saiote ou um embornal. A algazarra das maritacas fazia a tarde cair feliz. À noitinha, as roupas imundas do trabalho eram jogadas no canto do banheiro que ficava fora da casa. O banho era com um chuveiro de alumínio em que se colocava a água recolhida no poço. Era preciso cuidado para não cair dentro do buracão cavado para dar fim às necessidades do corpo.
Meus pais ainda moram em Macaubal e, por isso, retorno à cidade de temporada em temporada. Sempre me assusto com as mudanças, cada vez mais rápidas. E com a indelével descaracterização dos elementos culturais que compunham o mundo em que nasci.
A desqualificação dos valores da tradição caipira chega a descaracterizar o que havia no passado. Muitos se envergonham do tempo em que não tinham uma geladeira elétrica e encontravam formas extremamente criativas para manter comestível a carne das novilhas e das leitoas mortas.
As lingüiças caseiras causam hoje verdadeira ojeriza; a entrega de pedaços de carne aos vizinhos – para que quando este mesmo vizinho matasse sua bezerra, devolvesse outro pedaço; sendo assim, cada qual tinha o cuidado de abater a sua criação na época certa, dividindo as sobras com seus parceiros, em um pratinho que ia cuidadosamente coberto com um guardanapo de bordas de crochê – nem existe mais. Reuniões para fazer pamonha, então, é coisa raríssima!
Por estas razões – e motivado pela saudade que me fazia resgatar elementos culturais da lida caipira –, decidi que me envolveria em uma pesquisa para relatar e dar continuidade à memória de modos de vida que considero (senão ideais para os tempos sombrios que correm atualmente, ao menos) tão bonitos e dotados de uma poesia que só se encontra no cancioneiro da música sertaneja de raiz.
Como minha profissão é a de dramaturgo, a dramaturgia seria um dos canais de minha expressão. Decidi que, com os resultados da pesquisa livre em que me envolvi, produziria uma peça de teatro em que os costumes da cultura rústica do oeste do Estado de São Paulo fossem o verdadeiro mote para todo um memorial.
Alimentei-me de referências acadêmicas, visitei livros sobre a cultura caipira, os clássicos especialmente, descobri que nas fronteiras do estado a cultura caipira se expande viva em territórios que vão do Paraná até Minas, de São Paulo até Goiás e Mato Grosso. Fui até a Universidade Federal de Uberlândia, em Minas, e recolhi materiais das pesquisas do departamento de Sociologia que me levaram a Catalão, no estado de Goiás. Viajei para os lugares em que pudesse encontrar de volta o que fui buscar – tão longe e tão perto de minha casa.  Casa os meus pais.
Em todos estes lugares, encontrei semelhança com meu mundo de origem: o meu Macaubal – que é um lugar cheio de macaúbas, uns coquinhos amarelos em que vicejam samambaias levadas ao alto nos cocos dos passarinhos.
Resolvi que colheria histórias nos lugares em que passava. E recolhi materiais em todos os lugares. Especialmente em Macaubal e no fundo do baú das minhas próprias lembranças.
Com tudo isso, constituí a peça teatral que aqui se apresenta sob o título (nome do lugar fictício em que se passa a ação de minhas memórias) de Catalão-Macaubal.
Quis sempre ser fiel aos modos de composição da vida diária na vida caipira, extrair seus modos poéticos de interpretar a realidade, elaborar um sentido profundo de encarar a vida – que está se perdendo, embora talvez nos fosse útil, especialmente agora que o planeta clama por um contato mais amoroso com a natureza que ainda resta viva.
Os costumes da procissões, das treições e das colheitas! As festas santas e laicas... O sentimentalismo e as músicas de raiz. As danças de São Gonçalo violeiro e os mutirões de tear com algodão. As receitas caseiras da comida típica caipira. Tudo isso aparece em Catalão-Macaubal sob a ótica de um menino que viveu tudo aquilo de perto e dali partiu.
Para o leitor, um aviso: tudo foi escrito de acordo com a musicalidade da fala rústica caipira. Não abri mão de manter viva a poesia da fala acaipirada! Então, todos os erros do português formal do texto foram milimetricamente calculados para manter o sentido original das histórias que me foram narrados.
Que a leitura (cênica) seja boa e compartilhada com muitos!






Corpo e Movimento em Catalão-Macaubal


O trabalho corporal em CATALÃO-MACAUBAL baseia-se fundamentalmente na experiência com danças populares brasileiras. As batidas do Coco de Roda e do Toré, a circularidade da Ciranda, a evocação dos Maracatus e a louvação ao São Gonçalo, passando pelos pares da Caninha Verde e os trupés do Cavalo Marinho e da Catira, foram vivenciados no processo de criação da Formação 13, na Escola Livre de Santo André (ELT), formando um grande panorama de movimentos que construíram a sustentação corporal da encenação. Além deste cenário experimental com as danças populares, também amealhamos vivências basilares com práticas advindas da Mitodologia em Artes Cênicas, complexo de procedimentos cunhado pela preparadora corporal Luciana Lyra, em seu Doutorado (UNICAMP/2011).
Pelo caminho da Mitodologia, e como preparo do corpo para a dança e para a cena, trabalhamos práticas dos Métodos Feldenkrais Seitai-ho, fomentando novas trilhas e relações para os corpos envolvidos no processo. A Mitodologia entende que o corpo humano é uma síntese do cosmos, uma espécie de microcosmos, e que o cosmos é formado por quatro elementos que se combinam, todos esses mesmos elementos estão no corpo. Sendo assim, água, terra, fogo e ar, atuam como hormônios para imaginação, potencializando as imagens e as preenchendo de gradações e sentidos. No processo alquímico, a matéria deve passar por todas estas operações para ser purificada e transformada. Analogamente, no processo mitodológico, o corpo do atuante precisa vivenciar todos os elementos e suas combinações dois a dois para se aperceber das mais variadas possibilidades de preenchimento imagético que os elementos podem efetivar.
Em síntese, no espetáculo CATALÃO-MACAUBAL, a alquimia dos elementos no corpo foi potencializada pelos Método Feldenkrais e Seitai-ho, estes sedimentaram  a trajetória para as danças brasileiras e estas, por sua vez, abriram um campo propício de diálogo com a cena.

Luciana Lyra
Preparadora Corporal do espetáculo Catalão-Macaubal

2 comentários:

  1. Muito bom o seu texto. Nasci em Macaubal em 1961, morei na Ponte Nova, fiz os 2 primeiros anos de escola ali na Fazenda Bela Vista, do Carmo Buissa, uma escola que foi fundada por iniciativa de meu pai, Epaminondas Soares de Carvalho. Ali usei a Cartilha Caminho Suave. Depois nos mudamos para Rio Preto, de onde vim para a grande S. Paulo, e hoje sou professor de Filosofia (com Doutorado pela Unicamp, pela bênção de Deus). Onde você morava quando estava em Macaubal? Ah!, o Facebook tem um grupo chamado Macaubalense com orgulho. Grande abraço.

    Isaar Soares de Carvalho
    S. Bernardo do Campo-SP

    ResponderExcluir
  2. O QUE ME CHAMOU ATENÇÃO FOI A CIDADE DE MACAUBAL, E ACABEI LENDO TODO O TEXTO, FIQUEI CONTENTE DE SABER QUE TEM ALGUÉM DA MINHA TERRA NATAL COM ESTE OBJETIVO. NASCI EM 16/10/49 NA FAZENDA PONTE NOVA MACAUBAL, NETO DE ANTONIO DOMINGOS DA CUNHA.E AINDA TENHO ALGUNS PARENTES POR LÁ. F/ C/ DEUS.

    ResponderExcluir